Tradução do artigo "The Evolution of “Boys’ Love” Culture: Can BL Spark Social Change?" escrito por Itakura Kimie junto a pesquisadora Fujimoto Yukari para a revista Nippon em setembro de 2020.
Boys’ Love é um "gênero" de mangá e romances homoeróticos voltado para o público feminino. BL se expandiu para animes, dramas de televisão, videogames e outras mídias. Poderia provocar uma mudança social real, incluindo maior aceitação das minorias sexuais? A pesquisadora de mangá, Fujimoto Yukari compartilha seus insights sobre a cultura BL.
Os dramas Boys’ Love na vindos da Tailândia recentemente conquistaram um culto mundial de seguidores. “2gether”, uma história de amor de dois universitários do sexo masculino, conquistou muitos fãs, com um canal oficial no YouTube com legendas em inglês - chegando a liderar a lista de tendências globais do Twitter. Os BLs tailandeses, disponíveis por meio de serviços de streaming de vídeo e canais via satélite, também ganharam uma fã base no Japão.
O Boys’ Love teve origem no Japão, espalhando-se globalmente como um "gênero" de mangá e anime. De acordo com Fujimoto Yukari, uma pesquisadora de mangás femininos e questões de gênero, há um interesse crescente na cultura BL na Tailândia, China, Taiwan, Coréia e outros países asiáticos. Cada um evoluiu ao longo de um caminho único, retratando as complexidades das circunstâncias sociais em que as pessoas LGBT se encontram. Mas quais são as origens do BL no Japão e como o gênero mudou ao longo do tempo?
A revolução de Takemiya Keiko e Hagio Moto
Fujimoto acredita que BL no sentido geral surgiu pela primeira vez como shōnen-ai (romance adolescente de garotos) em mangás para meninas na década de 1970, oferecendo representações de laços fortes e encontros eróticos entre meninos adolescentes.
Até meados da década de 1960, a maioria dos mangás para meninas era criada por artistas homens. Mas no final dos anos 1960, surgiu uma nova onda de mulheres artistas, nascidas após a guerra. De repente, artistas femininas não muito mais velhas que seu público começaram a produzir mangás que elas próprias queriam ler. Isso gerou o conceito de Boys’ Love adolescente. Anteriormente, o mangá feminino apresentava protagonistas femininas, inevitavelmente limitando a expressão, devido à posição das mulheres na sociedade. Com protagonistas masculinos, os criadores poderiam representar personagens mais independentes e proativos e incluir narrativas eróticas ousadas. Essa percepção ofereceu uma oportunidade, e as leitoras abraçaram com fervor essas obras que retratam o apego e o amor entre personagens masculinos.
Um grupo de escritoras, incluindo Takemiya Keiko e Hagio Moto, produziram o primeiro mangá shōnen-ai. Eles foram rotulados como o “Grupo de Flores do Ano 24,” uma referência ao desempenho brilhante de sua geração e seu nascimento por volta de 1949 ("Showa 24"). Os criadores visaram conscientemente agitar a sociedade através de novas formas de expressão na manga. No mangá autobiográfico Shōnen no na wa Jirubēru ("The Boy’s Name Is Gilbert"), Takemiya disse que pretendia provocar uma revolução em seu mangá para meninas.
Hagio Moto lançou sua série Pō no ichizoku ("The Poe Clan") em 1972. Ela conta as façanhas dos "vampanellas" (vampiros) Edgar e Alan de aparência jovem ao longo dos séculos e é considerada um título imortal nos mangás femininos. Ela seguiu isso em 1974 com Tōma no shinzō (The Heart of Thomas), uma série ambientada em um internato alemão.
Então, em 1976, Takemiya começou sua série Kaze to ki no uta (O Poema do Vento e das Árvores), considerada o auge do gênero shōnen-ai. O mangá retratava o amor gay do jovem e bonito Gilbert, mas também incluía cenas vívidas de estupro e incesto, causando controvérsia.
Na época, a revista mensal Bessatsu shōjo, com histórias de Hagio e Takemiya, vendia mais de um milhão de cópias por edição. Era um admirável mundo novo, onde histórias publicadas em massa refletiam os valores de mulheres jovens nascidas após a guerra.
No final da década de 1970, muitas revistas publicaram trabalhos sobre relacionamentos entre homens. Então, em 1978, foi lançada uma revista dedicada ao gênero: June. A revista ficou conhecida por sua forte estética focada na beleza da juventude e apresentava seções culturalmente conscientes sobre literatura, romances, arte e filmes.
Yaoi se espalha mundialmente
O final da década de 1980 viu um aumento acentuado de trabalhos derivados conhecidos como yaoi, mangás de parodia publicados em dōjinshi - revistas amadoras de publicação própria. O primeiro deles parodiou o mangá Shōnen, “Captain Tsubasa”. Yaoi pega personagens de mangás e animes Shōnen famosos e os transforma em situações românticas. O BL comercial surgiu desses quadrinhos yaoi, evoluindo de contos de amor adolescente para criar um entretenimento mais otimista.
As editoras perceberam o valor comercial do yaoi no início da década de 1990, lançando revistas BL dedicadas. Autores que originalmente encontraram fama em dōjinshi conseguiram ofertas para desenhar mangás criativos. Graças ao lançamento de revistas BL, como Be × Boy, BL se tornou um gênero comercial estabelecido. Mas foi a artista de mangá Ozaki Minami, originalmente uma autora yaoi, que despertou a febre mundial do BL japonês com seu mangá "Zetsuai 1989" ("Absolute Love 1989"). Publicada na Margaret, uma revista semanal de quadrinhos feminina, e foi supostamente uma criação original. Mas, embora os personagens e o enredo fossem novos, obviamente foi inspirado no "Captain Tsubasa", colocando o trabalho no gênero yaoi.
BL na Ásia e Regulação da Expressão
Hoje, existem muitos BL comerciais audaciosamente eróticos. Na verdade, até recentemente, o Japão viu pouca censura da expressão artística nas obras de BL. Fujimoto acredita que a liberdade de expressão que existe no Japão contemporâneo é uma reação contra a regulamentação da liberdade de expressão durante a Segunda Guerra Mundial.
Ela explica que as pessoas que entendem a mudança titânica nos valores do pós-guerra, particularmente os mais velhos ou mais poderosos, incluindo os conservadores, estão mais cientes do perigo de regulamentar legalmente a liberdade de expressão. O respeito japonês convencional pela lógica e pela moralidade permite que a fantasia exista como uma forma de liberação de estresse. Com BL, o conteúdo erótico gráfico é visto como distinto da pornografia porque apenas enfatiza a relação entre dois personagens. Além disso, o material erótico para mulheres raramente foi levado a sério. Mas, recentemente, o BL foi sujeito a uma regulamentação mais rígida. Em Tóquio e outras jurisdições, os trabalhos de BL são cada vez mais designados como literatura perigosa.
A situação varia em outros países asiáticos. Na China, os romances de BL gozam de grande popularidade, mas cenas de amor entre homens não podem ser incluídas em dramas de televisão. Chen qing ling ("The Untamed"), um drama de fantasia histórica, foi baseado em um romance BL online, mas foi reformulado para a televisão como um “bromance” representando o forte vínculo entre os personagens masculinos. Expressões de amor entre os dois foram apenas insinuadas. Até escrever romances de BL envolve riscos.
Fujimoto diz que o governo chinês não estipula o que pode ser censurado, mas as cenas íntimas são arriscadas. Duas vezes, trabalhos de BL online levaram à apresentação de acusações. Em 2018, uma autora de BL recebeu uma sentença de prisão de 10 anos por publicar sem a aprovação do governo (a China tem um sistema de licença). Mas os autores de BL não desistiram, apesar dos perigos que enfrentam, e têm uma base de fãs dedicada.
Os mangás BL também são populares na Coreia do Sul, mas o país tem uma regulamentação rígida sobre a representação sexual. Fujimoto acredita que fatores sociais tornam a vida na Coreia mais difícil para as pessoas LGBT do que no Japão. Em contraste, o casamento homossexual foi legalizado em Taiwan em 2019, e fãs de BL que compareceram a um evento dōjinshi lá participaram ativamente do movimento que buscava sua legalização.
Dramas BL tailandeses ganham maior aceitação para pessoas LGBT
Fujimoto diz que a história da série BL na Tailândia remonta a 2013, quando o primeiro drama BL genuíno foi exibido. Em 2016, uma série chamada Sotus foi um grande sucesso. Mas o BL só recentemente atingiu novos níveis de popularidade. Agora, uma gama diversificada de dramas BL foi produzida, oferecendo uma conexão entre mulheres e pessoas gays fãs de BL. O drama Dark Blue Kiss levantou questões sociais, incluindo discriminação e revelação aos pais, mas também retratou cenas de amor que atraíram uma base de fãs yaoi. Foi elaborado de forma que o público apoiasse naturalmente o casal principal.
Há movimentos significativos em direção ao reconhecimento legal oficial de casais gays no país. Em julho de 2020, uma lei de parceria civil foi aprovada pelo gabinete tailandês, permitindo que casais do mesmo sexo adotem crianças e transmitam heranças. Se aprovado pelo parlamento, será um passo importante para a concretização do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
A controvérsia Yaoi — a distância com a realidade
Ao contrário de Taiwan e da Tailândia, no Japão, há uma grande discrepância entre a vida de homens gays reais e personagens em BL e obras semelhantes. Fujimoto acredita que essa divisão é o motivo pelo qual o gênero não traz apoio ou solidariedade aos gays na sociedade japonesa.
O início da década de 1990 trouxe a um intenso debate sobre yaoi em uma revista feminista. O antagonismo se originou de comentários de que yaoi e BL tratavam o sexo gay frivolamente, fetichizando os gays, fantasiando e impondo normas estéticas sobre eles.
O homem que postou essas críticas a BL disse que, quando ele era jovem, ele acreditava que só ele era gay, mas foi salvo por histórias de amor entre homens, como Kaze to ki no uta. No entanto, yaoi e outras obras de fan fiction começaram como paródias de manga e anime e pretendem ser fantasia. Os autores claramente não têm interesse em gays de verdade. Fujimoto acredita que esse foi um fator que atraiu críticas ao BL.
Mas essa “controvérsia yaoi” também levou a uma reavaliação gradual das formas de expressão tanto pelos autores quanto pelos leitores do BL. Em BL shinkaron (The Theory of BL Evolution), a ativista lésbica e estudiosa Mizoguchi Akiko escreve que, a partir do final dos anos 2000, autores talentosos surgiram para produzir um novo estilo de BL que retrata as relações homem-homem em maior complexidade e com mais sensibilidade.
BL evoluiu para um "gênero" que oferece potencial ilimitado para representar novos tipos de relacionamentos removidos das normas sociais que restringem os relacionamentos entre homens e mulheres. Eles alcançaram um novo grau de diversidade e refinamento. Com as próximas Olimpíadas de Tóquio, tanto o governo quanto a mídia de massa lideraram a convocação por uma maior diversidade e inclusão, incluindo pessoas LGBT. O clima geral está mudando gradualmente na sociedade.
“Elo perdido” para quebrar a maldição da normalidade
Fujimoto acredita que os dramas de televisão fornecem um “elo perdido” para preencher a distância entre a ficção BL e os gays. Até recentemente, BL se limitava a mangás e romances. Mas dramas de TV, com atores humanos, criam uma conexão natural com a realidade, apesar de obviamente serem ficção. Fujimoto sente que eles produzem uma mudança subconsciente na percepção dos espectadores.
Fujimoto aponta para "Ossan’s Love", uma série de sucesso de 2018 que gerou um filme. Ela sente que a série foi um trabalho de entretenimento cuidadosamente elaborado, com uma abordagem casual, mas atenciosa, que foi bem recebida pela comunidade gay.
Outro exemplo é "What Did You Eat Yesterday?", publicado em série em uma revista de mangá para meninos pela autora de BL Yoshinaga Fumi. Também foi transformado em um drama de televisão. A história retrata a vida familiar feliz de um casal gay de meia-idade - um advogado, o outro cabeleireiro.
Na opinião de Fujimoto, as normas convencionais no Japão tendem a condenar fortemente aqueles que se desviaram dos padrões sociais, levando ao seu infortúnio. Havia uma discriminação subconsciente, mesmo entre os jovens, de que, como os gays eram anormais, eles mereciam pena e precisavam de ajuda. Agora, há sinais de mudança. Fujimoto acredita que, se as pessoas assistirem a dramas sobre casais gays comuns que desfrutam da vida cotidiana, e perceberem que existem em comum, isso pode provocar mudanças na sociedade.
A representação de casais gays também mudará a percepção do homem. "What Did You Eat Yesterday?" mostra Shirō, o advogado, preparando refeições em casa todos os dias. Esse retrato realista pode ajudar os jovens a se libertarem dos laços da masculinidade estereotipada. Mas Fujimoto teme que o valor de BL tenha diminuído com o recente crescimento de trabalhos de BL que simplesmente escalaram dois atores galã para criar uma série de sucesso. Ela espera que as produções futuras visem uma maior qualidade de apresentação dramática.
Enquanto isso, Momo & Manji, um mangá histórico ambientado no período Edo, foi o primeiro trabalho do BL a ganhar um prêmio de mangá no Japan Media Arts Festival, organizado pela Agência do Japão para Assuntos Culturais.
Então, qual é o significado de BL hoje?
Fujimoto acredita que os trabalhos de BL estão quebrando normas sociais, sabedoria convencional e estereótipos ao fornecer representações sensíveis da diversidade das relações humanas. Os BL realistas reduziram a distância entre a ficção e a vida real, e com as mudanças ocorrendo lentamente em países como Tailândia e Taiwan, os BL retratando a vida comum podem se infiltrar casualmente na consciência das pessoas, inaugurando uma nova era.
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